sexta-feira, 13 de janeiro de 2017


A fila

Com tantas transformações e, porque não dizer, sustos que temos levado a cada dia nesse mundo, ando me perguntando o que faz com que as classes sociais com pouco poder aquisitivo, e uma vida de merda, defendam tão tenazmente quem as joga no buraco.
Vou de Marx à teoria da reencarnação, passando pela explicações científicas do DNA dos camundongos, e continuo na dúvida.
Mas, esses dias, o raio elucidador abriu meus caminhos. E não tô falando daquela parte do teto que desabou no shopping enquanto o simpático negão que fazia o conserto dizia so sorry.
Foi ali mesmo, na própria fila da lotérica na qual eu estava pra pagar as contas do mês.
Comecei a entender que tudo o que acontece no mundo poderia ser explicado por aquela fila.
Por exemplo, me dá sempre uma agonia quando começo a sentir a respiração de alguém no meu cangote, e sei que não estamos fazendo nada que me dê alegria. Ou quando a bolsa de alguém me espeta o rabo.
Por isso, tenho o hábito de manter civilizadamente os tais trinta centímetros de distância da pessoa que está à minha frente.
Nem precisa dizer que é ali, então, que passam os que saem dos elevadores, os faxineiros com seus carrinhos, aonde até brincam as crianças e, por isso, não raro, ainda ouço: a senhora está na fila?
Essa bovina tendência a aglutinar (bois são obrigados), e porque não dizer a quase cometer atos impúrios em público, mostra exatamente o pouco respeito que cada um tem por si e pelo próximo.
Mas jamais pelo sistema, pois a maioria se empurra por uma causa nobre: o jogo da lotérica. Tudo em nome do sacrossanto capital e de suas benesses. Um dia esse sonhador irá deixar de fazer parte da miséria humana e ser mais um predestinado que ostentará cabelos amarelos e carrões, e viverá em casa com piscina de mármore sem nenhum livro.

Havia dois rapazes na minha frente que a cada cinco minutos se viravam e olhavam com certa lubricidade para o fim da fila. Atrás deles, havia todo aquele povo.

E todos se policiam, vigilantes, para que ninguém lhes passe na frente. Já eu fico apreensiva com todo aquele dinheiro ao vivo que carrego porque na lotérica, a Caixa, não aceita cartões de outros bancos. Estranho como o sistema funciona.
E a moça do caixa defende isto com veemência, alegando que se todos usassem cartões, tudo viraria uma bagunça. Pobres bancos. 

Me preocupo mais ainda com aquelas armas poderosas do caras da segurança que vêm pegar o dinheiro com todo aquele povo ali, podendo servir de escudo humano. Não deveria haver uma lei dizendo que dinheiro só quando não tivesse alguém por perto?

Ah, lembrei. A pena para quem explode caixa eletrônico às 4 da manhã, sem ninguém por perto, a não ser um ou outro idiota que vai de pijama ver o que está acontecendo, e existe, pode crer, é maior - pasme! - do que a do cara que assalta o banco com as pessoas ali.
O capital vale mais do que vidas humanas?

Voltando à fila, fico sempre com a impressão de que cutucar o cara que está na frente é como uma terapia, pra quem cutuca, e um teste pra ver se você é um menino bem comportado, pra quem é cutucado. Até onde você aguenta. E pior, quem cutuca o faz em nome da própria instituição fila, nunca no próprio.

Brasileiros suspiram, resignados, ao fazerem suas fezinhas na esperança do sonho. Mas quando se sabe que até a previdência social é desviada para que esse sonho prossiga, isto é, perde-se a aposentadoria, mas garante-se a esperança de ser mais "um" milionário.

Quase tipo o trabalho voluntário e aquelas propagandas chatas que mostram crianças miseráveis nos quatro cantos do mundo e nos deixam com a sensação de que somos os mais egoístas porque não depositamos todo santo mês 30 reais, apenas 30 reais, eles repetem. Mas e o governo? e a tal gestão? e os empregos? e os impostos? e nem vou perguntar e a escola?

Mas, como diria a Dona Sinhá aqui do prédio, pelo menos a gente tem fila. Tem lugares que nem isso.








































quarta-feira, 4 de janeiro de 2017


Vivendo num país (Estado, cidade...) que a cada dia mais parece ficção. Vendo pessoas se venderem por nenhum trocado, e pior, mal conseguindo assumir a própria personalidade, já que para se venderem assumem personagens, que nem tão bons assim são, pois deixam entrever a farsa, e submersa no que sempre estive: filmes, livros e música, tenho me perguntado com frequência cada vez maior se de fato a ficção não teria virado realidade e vice versa.

Esses dias, por exemplo, vendo um documentário sobre a obra de Scorcese, me deparei com aquela cena de The Ranging Bull em que suores, sangue e sabe-se lá mais o quê explodem do corpo de De Niro e do outro boxeador na tela, e que, propositalmente, Scorcese que deixa o filme em preto e branco, diz que é justamente pra que a gente, platéia, não saiba mais diferenciar aonde começa o suor e acaba o sangue.

Imagine-se a delicadeza e precisão de tal trabalho. Da mesma forma, lendo e relendo O Lobo da Estepe do Hesse, me vem todo esse cuidado. No asseamento por exemplo daquela família que fingia ser família com todo o verniz dos móveis e do pinheirinho na frente da casa.

Enquanto tudo isso acontecia já não sei mais se na minha cabeça ou na ficção, me deparava a cada dia com os dramas dos pobres gaúchos, brasileiros, que frequentavam a mesma sala de espera, quase da espera do veredicto de vida e morte, a cada dia uma nova esperança, um susto, um o que é que os doutores vão dizer, e histórias e mais histórias, e faces que nunca vou esquecer. As histórias das pessoas que hoje sofrem do mal do século, que vinham de muito longe, atravessando o Rio Grande: Ijuí, Santa Maria, Igrejinha, São Jerônimo. Os diferentes sotaques entreouvidos, e até o chimarrão na guaiaca térmica. É ficção tudo isso, essa política cruel que não ressarce ninguém dos suados impostos e trabalheira de uma vida, que não deixa ninguém ficar para contar a história depois de morte no trânsito, por tiro ou afogamento, na política absurda contra as drogas, enquanto os países avançados se avançam, como fizeram há uns dois séculos atrás com o mesmo tabaco, pois tudo é questão de mercado e de deixar a pretensa moralidade classe média, classe baixa, sujeita ao glória a deus das tardes televisivas, a assumir de vez a latrina.

Não acredito que estou vendo-vivendo tudo isso. Hoje pensava numa dessas brasileiras, a de São Jerônimo, faxineira, com a bacia quebrada e que seguia fazendo faxina, e que o filho nem lhe deu tchau quando estava para embarcar na ambulançoterapia pra Porto Alegre, e que me disse que sua casa ficava às margens do rio, lindo e fresco pra tomar chimarrão cedinho, com os passarinhos, mas um problema quando chovia, e hoje choveu pra caramba, pois a casa acabava embaixo dágua.

Também não vou esquecer do menino homem-aranha, tão triste, segurando os próprios exames, na pré-cirurgia, enquanto a mãe discutia com alguém que a tinha tratado com desleixo no celular. Porque as mulheres se perdem com uns trastes, em vez de simplesmente amarem aquele serzinho que tá ali?

Não vou esquecer da amiga querida, vizinha de sala, do papo que batemos sobre tudo isso e mais, quando voltamos ao mundo dos vivos na pós. E muito menos da razão que me fez sair disparando do hospital, e aproveitar que o querido Emílio me foi buscar com o Vavá. Estavam fazendo uma obra justo na madrugada em cima, pasmo até hoje, da sala de recuperação, mais parecida com aquelas tendas de guerra, aonde se remexiam semi-conscientes os recém cirurgiados pelo SUS, e eram muitos.

Fiquei pensando que se eu resolvesse convidar alguns amigos músicos de heavy metal pra um concerto na tal sala, por certo iriam me impedir. Mas furadeira, martelada e dê-lhe obra, pode? Pra não atrapalhar o andamento do hospital de dia. Surreal.
E ninguém percebeu. Uma por estarem sedados, mas a outra por decerto estarem acostumados com o thriller diário, a distopia que nem o Scorcese poderia criar.

Claro que, para estar aqui contando, acordei do pesadelo, que pra mim sempre pareceu ficção. E agora posso, sim, partir pros meus roteiros, voltar à realidade.













terça-feira, 1 de novembro de 2016

Meu Menino Deus

O Menino Deus é um bairro que tem verso e reverso.Frente e fundos.Claro que dependendo de onde se venha, ou se vá.  
A Getúlio Vargas é nossa sala de visitas,a Praia de Belas tipo a porta dos fundos,no qual entram os de casa.No Sul,temos o Morro de Santa Teresa e no extremo Oeste,além da Érico Veríssimo,a Azenha.
Houve tempo em que a Getúlio se chamava 13 de Maio e era atravessada por um bonde puxado por burro,espero que burros,já que não gosto de ver animal sofrendo.E levava-se quase que um dia para ir e voltar de sua ponta de entrada até o final,lá na Igreja.
Também já houve tempo em que o perfume do Guaíba invadia nossos sentidos e nos convidava a um refrescante banho.Ali onde já foi o Negrão,galeto,churrasco e ponto de encontro de amigos,restaurante de comida honesta,havia a praia,as ondas batiam.
O morro de Santa Teresa era um lugar de mistérios,com muitos negros morando,com suas músicas,seus batuques,suas magias,seu carnaval.
Eu hoje subo o morro juntando o exercício com a busca de um tempo perdido,ou melhor,com a força que emana daquela terra,é meu lugar de poder.Tenho ali grandes amigos gatos e cachorros,que visito,e árvores e espaços sagrados,que sei que estão,mesmo que construtoras insistam em escondê-los,colocando condomínios em cima de sangas,nos exatos lugares em que apareciam os fantasmas da nossa infância,em geral velhos escravos.
Cruzando como o sangue em suas veias,tínhamos,temos, dois ônibus: o 77 e o 78. O 77 ia pela Getúlio, e o 78 era quando queríamos ir à Azenha.
No passado,porque hoje se confundem com tantos carros e lotações.
A Azenha é como uma irmã do Menino Deus.O comércio é popular,vale dizer aquela bota que se compra por 300 no shopping praia de belas, ali sai por 220.E sempre uma saída para natais nem tão cheios da grana.
O Menino Deus já teve até zoológico,na Ganso.Um alemão,provavelmente ecologista,criou,tinha até elefantes e devia ocupar uma área imensa,pegando a Bastian e adjacências.Como astróloga,quando morei de frente pra Ganso,pude constatar que ele também conhecia de certa forma as leis da geofísica,pois as pontas da rua coincidem exatamente com o início e o fim dos equinócios.
Havia muita gente que entendia de astrologia,homeopatia,ervas e outras alquimias vinda da Europa,assim me mostrou meu avô,um deles,e minha avó,uma delas,e Barbosa Lessa,já me mostrando gente espalhada pelo Rio Grande,e desse quilate.
Até o Caetano se apaixonou pelo bairro e fez até música.
Certa vez,eu era criança e não sei porque motivo tinha me acordado muito,muito cedo,vi passar pela José de Alencar em direção ao rio um cortejo de centenas de pessoas todas vestidas de branco e batendo seus pés descalços na terra da José de Alencar,que era de terra.Era dia de Yemanjá,e vi que eles estavam envolvidos em algo muito mágico,em direção às águas.Seus pés como que marcavam um compasso.

Mas o Menino Deus,que para mim foi berço também do cinema,já teve até bang bang.Quando fizeram os clientes do Zaffari ficarem de cara pro chão num sábado à noite, e um cliente revoltado atacou os kidsvalentia com cebolas,o que até hoje ainda não consigo entender o significado.

No Menino Deus teve a primeira protetora de animais, a brava Palmira Gobbi,que era lendária por reverter o chicote do lombo do animal para quem o afligia.Essa pra mim tinha que ter estátua.

O Menino Deus tem papagaios,que cortam os céus,saem do morro bem na hora em que as crianças vão para o colégio e voltam quando elas voltam.Acredito que no Marinha ou na Redenção haja uma escola de papagaios.

O Menino Deus me fez encontrar o ballet e a música,na Escola de minha mãe.No morro,as festas com samba,cachaça e muita camaradagem entre os adultos cabeças pensantes da época.




   















quinta-feira, 3 de março de 2016

Céu de Stones

Não fui no show. E nem saberia dizer exatamente porque. Talvez porque seja lenta para correr antes de saber que "os ingressos estão esgotados", talvez porque o calor portoalegrense me deixe tão fora de mim que eu não consiga fazer mais nada a não ser procurar em todos os sites de previsões de tempo o dia em que tudo vai acabar. E talvez porque aquele ciclone do dia 29 tenha acabado de vez com as minhas economias, já que todos os eletrônicos deram pau, a começar pelo computador, e aí quando novos ingressos voltaram à venda, já fosse impossível.
Mas, assim como o furacão me pegou em cheio, já que minha pequena cobertura fica bem em frente ao Guaíba, no Menino Deus, morar aqui tem suas vantagens. Daqui curti inteiramente o show da Madonna, pois o Grêmio também é vizinho e ontem, já entendendo que havia feito uma grande bobagem em não ir ao tal "momento histórico", tive a minha pequena compensação, ouvindo do meu terraço, a voz do Mick e a guitarra do Keith. 
Não só ouvi, como vi também as luzes que saiam em fachos do Beira-Rio e, como o céu estivesse carregado de nuvens, estas ficavam bem das cores do show. Até um pássaro que surgiu no meio daquilo, ficou lilás. E as nuvens foram passando umas às outras a novidade: a cor era do show dos Stones. Logo uma grande quantidade delas veio - e daí se choveu, porque chuva deixa tudo mais lindo e brilhante também, é só olhar as fotos - e se aglomeraram deixando tudo ora azul, ora lilás, ora amarelo ou branco. 
Dancei, cantei e me emocionei. Principalmente quando ouvi "e aí, gurizada". Bem capaz que não haveria de.
Falaram de tanta energia, que gente com setenta, saltitando feito uma lagartixa louca, era raro. Perguntaram da comida. Dos exercícios. Das drogas. Mas não perguntaram da energia espiritual, do amor que move os artistas, que se divertem muito com o que fazem.
O Mick é Leão, e entendo disso porque sou, assim como o Caetano. O signo das eternas crianças. O Keith é Sagitário, se não me falha a memória, signo do grande Júpiter, também muito divertido.
Me lembro de quando eles eram jovens, e depois de tanta gente se indo aos 27, por conta de picos e carreiras, sempre imaginei que eles não iriam tão longe. Mas tirando aquele pacto que fizeram com o capeta, o fato é que tudo na verdade era mais história do que realidade, pois ninguém sobrevive, tão jovem e efervescente se entregando a vícios.
Eles comem orgânicos, tem uma disciplina profissional digna de atletas olímpicos, guardadas as devidas diferenças. Pois até atletas chegam numa determinada fase e param.
E pasmem: são pais de família, sendo que Mick foi até em reunião de Pais e Mestres do filho Luccas, anda mostrando as fotos do bisneto e da neta, como qualquer coruja, e batem um papo tão tranquilo e normal como qualquer mortal.
Quando a chuva apertou e não havia mais como ficar nem na área externa, nem ouvindo por uma frestinha da janela do meu quarto... imagina: eu ouvi o Mick Jaegger no meu quarto, ao vivo! - corri pra tv, pra ver se alguma emissora me mantinha ainda numa sobrevida stoniana. Nada local, que pena. Em compensação, a Luciana Gimenez me salvou, pois estava justamente entrevistando seu ex, Mick. Nessa matéria contou até que Mick, capaz, é fã de coxinhas (não do tipo que ela obrigou a banda a engolir na festa em sua casa em Sampa, leia-se Alckmin e cia) e se joga nas empadinhas brasileiras. Enquanto os dois estavam conversando, sentados em poltronas, como se fosse na sala deles, se notava que por trás das câmeras havia algo que desviava a atenção dos dois, fazendo com que a entrevista lá pelas tantas corresse e acabasse logo. Era o filho Luccas, que tipo, deveria estar dizendo: pô mãe, acaba logo esse negócio que eu quero curtir o meu pai. Chega. Como qualquer filho da gente faz.
Se em algum momento da vida pregressa senti frisson e arrepios ao ouvir os Stones, dessa vez fiquei com uma sensação de que são muito próximos. E agora com licença que vou malhar. Mick Jaegger e companhia serão daqui pra frente a grande inspiração pra manter a forma e a alegria tranquila. 
Quem sabe, pra me apaixonar mais ainda por eles, vou a Cuba?
E pra gente sempre se lembrar que Cultura, leia-se Música, Artes, qualquer delas, é tudo, não poderemos nunca esquecer que num show em que estavam 40 000 pessoas não ocorreu um só incidente. Bem que a Brigada poderia ter ido fazer outras coisas e deixado a gurizada entregue ao que mais gosta. A paixão pela Música, o envolvimento com qualquer arte apazigua, libera o amor. 
E fiquei mais exibida ainda por saber que ambos temos o mesmo projeto em comum: nossas séries de TV.